Esta história é verdadeira; pois as coisas imaginárias (lobisomens, almas penadas, assombrações, visagens, amortalhados etc.) são frutos das “estruturas mentais” de um povo e revelam aspectos importantes de seu universo simbólico e cultural.
Havia, numa fazenda do São Paulo (sítio da Serra Grande, entre o Ipu e Guaraciaba do Norte), uma mulher muito má, que judiava muito de negros escravos, agregados e empregados de sua fazenda. Diz a lenda que tal mulher obrigava as negas a mexer tacho quente com as próprias mãos, e que teria um dia batido com tanta força com uma colher de pau na cabeça de uma criança negra, filha de uma escrava, que a mesma morreu imediatamente por afundamento de crânio. Tal mulher, pelo que pude apurar em minhas “leituras” e investigações, era avó do coronel Porfírio José de Sousa, patriarca da oligarquia que dominara o Ipu por ocasião do governo de Antonio Pinto Nogueira Accioly (1896-1912). Porfírio fora nomeado Intendente do Ipu (o que equivaleria hoje ao cargo de prefeito) pelo próprio Accioly, “governador” do Ceará neste período; seu filho, Felix José de Sousa, fora nomeado juiz municipal, seu parente, o coronel Antonio de Sousa Aragão, seria eleito presidente da câmara; seu genro o substituirá na intendência (João Bessa Guimarães); o promotor, Antonio Carvalho, também será recrutado no seio desta parentela. Melhor dizendo, desta oligarquia descendem hoje os Aragão, os Sousa e os Carvalhos, que se somando aos Martins, aos Araújo e aos Correia, eram os verdadeiros “donos do poder” na Ipu daqueles tempos.
Voltando a mulher da cobra, cito estes versos revelados a mim pela senhora Ivanira Paiva de Oliveira, uma verdadeira “guardiã” da memória local: (a grafia foi mantida como no original)
Quando eu vim da minha terra
Descambando a Macambira,
Me falaram de uma cobra
Que era avó do seu Prófirio.
Então-se eu fui até lá
E via a cobra engaiolada
Me informei no povoado
O tanto que essa velha era malvada
O nome dela era Malvina
Ela tinha uma fazenda
E muitos negros cativos
Judiava com os coitados
Tanto que ela podia
[...]
Todo mundo lhe temia
Era o pavor do lugar
Até que um dia Malvina
Escama começou a criar
E os nego apavorado
-Que está acontecendo?
-O que ela quer virar?
Um dia encontraram ela
Virando cobra num lugar
Então todos ficaram apavorados
E se puseram a gritar [...].
Para complementar, gostaria de narrar mais estes versos relatados a mim pelo folclorista Florival Vale:
Tando eu cantado a cobra
Lá na feira da Estação
Quando chegou seu Porfírio
Me dando voz de prisão
Quando eu ia pra cadeia
ia bem divagarim
Me valha dona Adelaide
Lhe peço por caridade
Venha soltá seu neguim!
Da quina da serra
pra beira do rio
A cobra avuava
Fazendo assovio
[...]
Lhe firo – lhe firo!
O primeiro qu’eu como
É meu neto Profirio!
Parece que o coronel não gostou nem um pouco de ver o nome de sua falecida vovozinha na boca “atrevida” do vate popular (infelizmente tal poeta não deixou registrado o seu nome). A velha Malvina morrera provavelmente antes do fim da escravidão (1888), e fora enterrada onde hoje se localiza a escola Murilo Aguiar, atrás da igreja matriz. Diz a lenda que por ocasião do falecimento de um outro parente, a família abrira o jazigo para enterrar o outro morto junto à matriarca; e para a surpresa de todos, a velha havia virado “corpo-seco”, estava com os olhos amarelos arregalados, e com horripilantes dentes à mostra (quando um corpo não se decompõe, algo perfeitamente natural e possível no calor do sertão, o imaginário popular atribui a isso um “castigo dado por Deus” para expiar os pecados do morto; diz-se logo “-fulano é tão ruim que a terra não come”!). Apavorados, correram todos: o coveiro, o padre, o sacristão, os “cabocos” que iam levando o caixão, os parentes mais devotos (até mesmo o próprio Porfírio, fora o primeiro a correr!); cabras alvoroçados e apavorados gritavam pelas ruas do mercado:“- A velha Malvina virou corpo-seco, negrada! Eita peste ruim!”
No imaginário popular da cidade o coronel, que havia monopolizado com seus parentes os cargos de poder e prestígio na cidade sem “amparar” aos “afilhados” e amigos, passara para a memória local como “filho da serpente do São Paulo” (coisa Ruim!), e no imaginário, e a seu modo, a população legou ao futuro a sua vingança; uma vingança imaterial, presente no universo da cultura e do símbolo.
Na missa dominical, as vozes em coro cantaram assombradas:
O’ martyr de Christo,
O’ santo varão,
Livrai-nos da peste,
São Sebastião
A “peste” da oração, da qual se pedia para São Sebastião nos defender, era, na imaginação dos fiéis daquele momento, a “cobra do São Paulo”, a avó do intendente, a bisavó do juiz etc. A vingança “imaginária” (simbólica) veio do fundo cultural da herança medieval de nossas tradições mais fantásticas, misturada ainda com as crendices e lendas indígenas e negras. O imaginário sociocultural da população do Ipu promovera a seu modo um revide vingador contra o clã dos “Carvalho”: para a cultura popular, a matriarca, “virou serpente”, um animal maldito, coisa do “Cão do inferno!”. Para o homem e para a mulher comuns, que acreditavam naquelas crenças, quem sabe São Sebastião, nosso “herói defensor”, covardemente transpassado por três flechas assassinas, inerte no altar da Matriz, não pudesse, com as preces, descer do Céu e nos “livrando da peste”, travando um combate mortal contra o “Dragão de São Paulo” e a sua prole de “coronéis exploradores” por ela gerados?! A seu modo, a lenda traduz uma faceta inusitada da cultura, e não existe inocência ou “imparcialidade” no sentido simbólico e altamente depreciativo com que o imaginário popular procurou “julgar” e “enquadrar” ao clã dos “Sousa-Carvalho”.
Para concluir a lenda, diz-se que o coronel transferiu a avó para um sítio no São Paulo, e que mandara queimar e enterrar ao fantástico animal, mas que ela reaparecia desenterrada e ameaçadora sobre a própria sepultura. “Não havia mão humana que pudesse matar tal animal”, disse-me o empresário Marquinho, dono da Ótica Gabriel, antigo morador do sitio São Paulo, e que cresceu ouvindo esta lenda. Minha própria mãe, Luisa Alves, disse-me quando eu ainda era criança, que a serpente, “era do tamanho do dragão de São Jorge”, e que as autoridades, cansadas de tanto queimar e enterrar ao animal sem ver resultado decidiram mandar construir uma jaula enorme, do tamanho de uma casa, e prenderam a serpente dentro dela, e a jaula fora colocada num dos vagões do trem, e enviada ao porto de Camocim, e de lá, embarcaram-na num navio de carga, e a jaula com a serpente do São Paulo fora jogada “no fundo do abismo” do oceano Atlântico; e lá dorme desde então. Chegará o dia, diz a lenda, que a ferrugem corroerá o ferro da jaula, e “o animal maldito se libertará, e voltará voando para assombrar a pobre e sofrida população do Ipu!”
As nossas oligarquias já não nos assombram o bastante? Quando rezar pensando na lenda da cobra maldita, lembre-se de pedir a São Sebastião para nos livrar de mais esta peste: a peste das oligarquias que sempre retornam do fundo do abismo para nos dominar eternamente!
Raimundo Arcanjo. Algum dia de 2010.
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