sábado, 25 de dezembro de 2010

Nasce o município: o Estado une-se às parentelas para forjar a cidade (1850-1900)

 
 
 
 
 Raimundo Alves de Araújo[1]
      
RESUMO

Este artigo procura apresentar os principais problemas enfrentados pelo Estado Nacional para se fazer presente e se afirmar sobre os nichos de poder privado da região de Ipu e da Serra da Ibiapaba (Noroeste do Ceará) da segunda metade do século XIX até os anos iniciais do século XX. Predominava como padrão de conduta certa “violência ritual” e acentuada incontinência dos impulsos instintivos; a violência individual era entendida pelo homem comum como um meio “natural” através do qual os atritos pessoais e políticos podiam ser resolvidos; os espíritos ainda eram “livres” e “soltos”, e os impulsos agressivos ainda não haviam sido submetidos ao processo de civilização promovido pela censura do Estado ou pela auto-censura dos costumes; a construção e o aperfeiçoamento da aparelhagem governamental na região teria que passar necessariamente pela subjugação e pelo “amansamento” da “índole guerreira” dos indivíduos do Ipu e do sertão a sua volta.  


PALAVRAS CHAVES

Poder público versus poder privado; Estado central versus poder familiar; processo civilizador. 


            Sem poder se fazer presente nos vastos sertões, o governo nacional delegava funções de Estado aos principias proprietários de terras da região centro-norte e noroeste da província do Ceará da segunda metade do século XIX, originando daí o conhecido gigantismo do poder privado frente à mesquinhez e a atrofia do poder público. O poder privado se fazia público através da ação individual das parentelas regionais, que eram “recrutadas” pelo governa para exercerem as funções de mando nos locais distantes do litoral da província. A hipertrofia do poder público-privado dos fazendeiros se traduzia principalmente na Guarda Nacional e na Câmara de Vereadores; era através destas instituições que os proprietários regiam os destinos de sua comunidade com “mãos de ferro”. Segundo Amir Leal de Oliveira (CEARÁ, 2009; p. 17) “Até a segunda metade do século XIX não havia uma unidade político-administrativa no que hoje chamamos Ceará”; e a construção do Estado Nacional na região passou pela imposição de Fortaleza como capital da província e pela criação de uma aparelhagem governamental que veio se firmar lentamente sobre a “autonomia anárquica” das vilas e fazendas herdeiras do mundo colonial.
            Nas câmaras municipais e na Guarda Nacional o poder “moral” e informal dos fazendeiros se traduzia no poder formal e legalmente reconhecido pelo Estado; e era através da “lente torta” do arbítrio dos grandes e médios proprietários de terras que aquela sociedade veio a enxergar a “justiça”, a defesa da propriedade, da honra e conhecer a presença do Estado na região. As instituições de governo cresciam anemicamente á sombra do grande poder egoísta dos patriarcas rurais sem lhes impor restrições; era natural que uma família latifundiária ocupasse para si os postos de oficiais da Guarda Nacional, juiz de paz, juiz leigo, vereadores, promotor, escrivão, delegado de polícia etc., e ainda transformasse sua “cabroeira” em força policial local.
            Os órgãos de governo eram emanações do poder familiar nas vilas e cidades dos interiores cearenses deste período; vejamos os principais nomes da câmara municipal da Vila Nova[2] em 1870:

Vicente Ferreira de Araújo Lima (presidente), José Saboya de Castro e Silva, Victoriano Rodrigues Leite, Cesário de Mello Silva, João Corrêa de Sá, Lúcio Rodrigues Moreira e Luiz de Mello Marinho. [...] Suplentes: João Rodrigues de Andrade Cajão, José Monteiro da Silva Moral, João Carlos de Sousa Lima, Gonçalo Ximenes de Aragão, Simplicio de Sousa Lima, Francisco Xavier de Aragão e Pero Alexandrino de Oliveira. Justino José Uchoa (Secretário) (ARAÚJO, J. 1970).


Agora detemo-nos sobre os membros da Guarda Nacional:

[...] comando superior [..]: Felix Jose de Sousa, chefe do Estado Maior: Vicente Gomes Tôrres de Vasconcelos, Majores ajudantes de ordens: Jose Gonçalves Veras e Francisco Alves de Carvalho; Capitão Secretário: Raymundo Rodrigues de Magalhães; Capitão Quartel-mestre: Pedro Ribeiro de Oliveira e cap. Cirurgião-Mor: Liberalino Dias Martins. Comandante do 26º Batalhão de Infantaria: Tte. – Cel. Francisco Silvino de Tôrres e Vasconselos. Comandante do 38º Batalhão de Infantaria: Tte. Cel. Joaquim Porphirio de Farias. [...]. (Id; Ibid. o grifo é nosso).


Sabemos que estes homens (os Araújo, os Melo, os Aragão, os Sousa etc.) pertenciam aos principais grupos familiares que herdaram terras e poderes público-privados na região; eram na acepção da palavra os “donos do poder” nos sertões do Ipu e de Campo Grande por todo o século XIX. Entregues aos cuidados das parentelas rurais, a câmaras e a Guarda Nacional era um lócus privilegiado para a produção e reprodução do poder privado dos fazendeiros e seus asseclas; um poder privado que se fazia público, e um poder público que se fazia privado. Estes homens, ao se apropriarem destas instituições, vinham preenche o vazio deixado pelo Estado, e exerciam através do personalismo e do arbítrio pessoal um tipo específico de poder político: o denominado poder do “homem cordial” definido por Sergio Buarque de Holanda (1981).
            Nada traduziria mais esta relação de poder do que este trecho das memórias do professor Antonio Ximenes de Aragão:

...tiverão lugar dois roubos feitos, hum a Silvestre Rodrigues Veras, e outro a Antonio de Araujo Costa, aquelle morador do temo de Vila Nova, e este no de Quixeramobim, ambos ricos e bem aparentados. [...] Em consequencia alguns dos filhos, e genros de Silvestre Rodrigues tratarão de perseguir taes roubadores, [...] ignoro se por meios judiciaes, ou voluntariamente que he o mais certo, por que a justiça neste tempo era nulla, reinando unicamente o bacamarte, com que erão decididas todas as questões, fosse qual fosse sua natureza.  [...] Chegado que fosse ali, propoz aos Carlos (parentela acusada de praticar o roubo), que se quizessem render sem usar das armas lhes promettia debaixo de palavra de honra, serem garantidos suas vidas, que serião bem tratados em sua prizão. [...] Confiados nesta palavra de Menezes, entregarão-se [...] onde Menezes os entregou a mercê de seus adversários. [...] botarão-nos com toda a segurança a titulo de irem remetidos as cadêas [...] de Sobral. Mas coitados! [...] seos condutores [...] fizerão-lhes fogo, matando a todos [...] (ARAGÃO; 1913; p. 103-104; como no original; o grifo é nosso).

Segundo a fala do professor, o combate ao crime na propriedade dos Araujo deveria ser feito por eles próprios, pois “a justiça neste tempo era nulla [...] reinando unicamente o bacamarte” (Id; Ibid), e, portanto era legítimo que a parentela promovesse a sua justiça grupal. Se a lei que prevalecia era a “lei do bacamarte” é claro que o resultado descambaria sempre para o arbítrio individual: “[...] seos condutores [...] fizerão-lhes fogo, matando a todos”, pois esta era a lógica da “lei passional”.
            Outro trecho das memórias do professor evidencia a “cumplicidade” do poder estatal com o poder egoísta:

Procuramos o juiz de paz do lugar [...] lembremo-nos que este José de Andrade foi aquelle mesmo juiz de paz que havia mandado prender a trez cabras valentões, que era o terror daquella terra, os quaes depois de prezos [...] não temião balla, [...] tanto que elle abusando de sua autoridade mandou fazer-lhes fogo, e enviou os para outro mundo, deixando assim izentos os moradores do lugar do medo que delles tinhão [...] deste procedimento de Andrade deu elle parte ao Presidente da Província, que não somente o approvou, mas tão bem lhe recomendou que continuasse com sua justiça, para ver se assim se expurgava da província tão grande numero de malvados, perturbadores do sossego das familias passificas, creando milhares de orphãos, a quem mataram pais e maridos. (Id.; Ibid, p. 14-15; como no original).


Meneses nos diz que “A índole do povo ressente-se de certa ferocidade” e que “um filho da Ibiapaba [...] não sabe andar sem trazer à mão uma longa espingarda e no quadril a longa faca de mato” (1965; p.156 e 117). Estamos em um momento em que ainda não havia ocorrido uma efetiva monopolização da violência, e reinava certa “frouxura” nos impulsos individuais; de tal modo que as soluções de “rixas pessoais”, assim como a punição de criminosos e delinqüentes eram entendidas como uma prerrogativa da “competência” do individuo e de sua família muito mais do que do governo.
            A violência pessoal, o fato do “cabra ser macho”, de “não levar desaforo pra casa”, era um capital social valorizado e perseguido pela maioria dos homens daquela sociedade. Era lícito ao marido traído “lavar sua honra com sangue”; era legítimo ao ofendido “fazer justiça com as próprias mãos”, era natural ao homem da serra e do sertão andar armado e promover a sua “justiça privada” -“que he o certo”-, segundo o professor Aragão.   

...Galisto [valentão afamado] indo um dia à casa de Venâncio [...] dissera certa grosseria à senhora deste, [...] Galisto tentou acometê-lo nos caminhos, e não conseguindo, o foi esperar em sua própria casa. [...] Aí Venâncio [o marido ofendido] o surpreende, e [...] lhe desfecha no peito uma bala, sem que o assassino [Galisto] tivesse tido tempo de lançar mão da arma.
Morto sobre a varanda, Venâncio agarra-o pela perna e o arrasta até o pátio, onde algumas pessoas lhe deram sepultura. [...] Venâncio foi absorvido no júri. (MENESES; 1965; p. 233)

O costume de resolver as coisas através de rixas pessoais era algo marcante e cotidiano; característica essencial de uma sociedade onde o Estado ainda não se fazia presente como instância legítima para intermediar a solução de conflitos.

Nas reuniões do povo [...] o movimento do crime ou da rivalidade, às vezes a simples jactancia de um ou outro, basta para provocar os desafios, as luctas violentas de que resulta a maior parte dos ferimentos e homicidios; pois o carcter cearense tende a exagerar os pontos de honra, e difficilmente se pode cohibir a’aquelas reuniões o uso de armas e de bebidas espirituosas (CEARÁ...1880; p. 5. O grifo é nosso; como no original).

Tal como nos aponta Maria Silvia de Carvalho Franco, a violência estaria “institucionalizada”, além de constituir toda uma “ética” socialmente valorizada que “... atravessa toda a organização social, surgindo nos setores menos regulamentados da vida, como as relações lúdicas, e projetando-se até a codificação dos valores fundamentais da cultura” (FRANCO, 1997; P. 27). Aquela era uma sociedade que herdara o “ethos guerreiro” do período colonial; sociedade que objetivou a violência como norma de conduta “natural” em seu cotidiano, de tal sorte que não poderia entender a política e a “administração governamental” como algo fora da esfera da “violência privada”; daí o grande desafio para o poder nacional: “domesticar” aos indômitos homens e mulheres do centro-norte e da Ibiapaba e submete-los a um processo de controle e autocontrole “civilizador”.
           
O têrmo do Tamboril, além das correrias dos Mourões, foi ainda de 1871 a 1875 devastado pelo bando armado sob as ordens do salteador Manuel Ribeiro Melo.  [...] Êsses facínoras traziam em sobressalto Tamboril [...] Príncipe Imperial, Independência, Boa Viagem, Pedra Branca, Santa Quitéria e Ipu.  [...] Invadiam qualquer fazenda para mudar de cavalgaduras e arreios, forçavam as senhoras casadas e virgens, saqueavam as propriedades, e assim levavam por tôda parte a desolação e a morte. [...] O Governo da província [...] enviou para ali fôrça capaz de fazer frente à audácia dos bandoleiros. [...] Para descobri-lo o delegado fêz recolher à prisão sua amásia, a quem manda aplicar severo castigo, e então conseguiu se informar de seu esconderijo. [...] Preso Ribeirinho, [...] ferido [...] da bala que lhe atravessava o pescoço, foi medicado [...], sendo remetido a Ipu, daí para Sobral, e para a Capital. [...] Voltando ao Ipu para responder ao júri, fugiu da prisão e faleceu pouco depois. (MENESES; 1965; p. 278; como no original).   

Homens como Galisto, Venâncio, Ribeirinho, José de Andrade e outros valentões citados aqui agiram dentro de um universo de sentidos onde a violência ritual e a valentia explosiva era um capital simbólico perseguido e ostentado por todos. O grande problema enfrentado pelos governos seria o de “domesticar” e submeter este homem beligerante e sua “ética guerreira” ao crivo da lei impessoal do Estado moderno. Mas isso se deu lentamente, quase que por “geração espontânea”, à medida que novas estradas eram abertas, o contado do sertão como a economia cosmopolita se ampliava, e novos valores e hábitos “civilizados” penetravam no imaginário cultural dos homens e mulheres da região. Com o avanço do processo civilizador, provavelmente valentões como “o salteador Manuel Ribeiro Melo”, o “Ribeirinho”, ao exprimirem seus instintos agressivos já vieram conhecer, na segunda metade do século XIX, um poder de repressão estatal muito mais neutro e atuante que seus antepassados do Ipu e de São Gonçalo da Serra dos Cocos[3].
            Norbert Elias analisando o processo de civilização ocidental diz-nos que

Grande parte do que nos parece contraditório – a intensidade da religiosidade, o grande medo do inferno, o sentimento de culpa, as penitências, as explosões desmedidas de alegria e de divertimento, a súbita explosão de força incontrolável do ódio e da beligerância – tudo isso [...] é na realidade sintoma da mesma estrutura social de personalidade. Os instintos, as emoções, eram liberados de forma mais livre, mas direta, mais aberta [...]. (ELIAS; 1994; v. 1; p.198)

Trazendo Elias para o Ceará, acreditamos que a grande ocorrência e crimes de morte e violências diversas registradas nesta área seria o resultado da ausência de barreiras de contenção aos instintos; o ódio era desmedido, sem freios ou contenções, e as explosões de ira eram socialmente valorizadas como “coisa de cabra macho”. Os homens viviam se medindo, nas festas populares, nas novenas, nas feiras livres etc. a “jactancia” e “os pontos de honra” correspondiam segundo o Presidente Jose Julio Albuquerque Barros a 74% dos crimes praticados na Província em 1880 (CEARÁ, 1880).
            Na medida em que o século XX se aproximava ocorreu uma acentuada mudança no padrão de agressividade; acreditamos que o avanço deste “processo civilizador” fora gestado a partir da ampliação das cadeias sociais de interdependência, da maturação da aparelhagem governamental e da ampliação do fluxo de relações sociais e comerciais capitalistas. Lenta e quase imperceptivelmente o Estado e suas instituições passou a minar a “legitimidade” e a força social dos agentes do poder patriarcal e familiar e a conter os impulsos de agressividade dos serranos e sertanejos.
            Mas onde se evidencia a maturação das instituições do poder central? a) na inauguração, em 1882 da estação ferroviária de Sobral; b) na elevação da “Vila Nova do Ipu Grande” à categoria de Cidade em 1885; c) na inauguração do prédio da Estação do Ipu em 1894 (ARAÚJO, R. passim; p. 13-14); d) na elevação de Campo Grande ao patamar de municipio em 1883 (ARAÚJO. P. F.1988; p. 113) dentre outras. Cortado por estadas e pela ferrovia, a área geográfica do município de Ipu e região, graças ao aumento das cadeias sociais de interdependência, passou a reclamar um melhor gerenciamento de pessoas, recursos e instituições.
            A “ossificação” de um judiciário profissional teve, é claro, um papel importante na luta do Estado contra o poder privado:
           
Esta comarca, victima de conflitos armados desde o seu principio, tem sido theatro de crimes horrorosos. [...] Quase todos os artigos do código criminal [...] tem dado occcasião a criminosos de todas as classes e hierarquias. [...] Essas rixas, porém, que tão graves prejuizos tem acarretado á civilização e ao progresso da comarca, [...] (por isso mesmo os) poderes publicos do paiz, [...] teem sido infelizes, [...] na escolha dos magistrados  a quem teem confiado os destinos sociaes da população, que parece, por isso mesmo, haver se habituado ao desrespeito á lei e á justiça, [...] amparados por um escandaloso patronato dos governadores de situações politicas, e, quiçá, agentes do poder publico,[...]   (SOUSA, 1915; p. 169)

À medida que novas estradas e ferrovias eram abertas, vilas e cidades eram criadas, novas comarcas projetadas etc., o governo central passou a contar com uma via de acesso rápido ao coração do poder privado das parentelas indômitas do sertão centro-norte e da Ibiapaba; doravante a prepotência e a ferocidade dos habitantes contariam com uma resposta rápida por parte de uma aparelhagem policial-judiciária muito mais ágil e eficiente.    
            Mas, segundo José Murilo de Carvalho (CARVALHO, 2008), com a instalação da república teria havido um revigoramento dos interesses rurais e locais sobre os interesses nacionais; ameaçadas com o fortalecimento do poder central verificado ao fim do Império, as elites dominantes planejaram a República Oligárquica como forma de “segurar” a marcha das forças centrípetas que convergiam para o fortalecimento do poder central no Rio de Janeiro. A saída seria a fragmentação estadual; doravante uma oligarquia forte, encabeçada por Antonio Pinto Nogueira Accioly, encastelada em fortaleza, daria as cartas e se imporia aos sertões cearenses de modo coercitivo; era o “coronelismo” em seu auge. Segundo Victor Nunes Leal (1997; p. 276), este sistema político seria “... dominado por uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido”. Por incrível que pareça, a República Oligárquica teve suas contribuições na maturação do poder nacional: o poder estadual radicado em Fortaleza aumentava seu grau de penetração nos interiores pela necessidade republicana de “construir o consenso eleitoral”; e ao fazer isso, sem o querer, acabava por aprofundar a subjugação e o controle estatal sobre os “feudos rurais”; a oligarquização do poder político na capital cearense contou em paralelo com uma oligarquização do poder político nas pequenas cidades distantes dos interiores; a seu modo, este processo contribuiu para o aprimoramento do Estado nos sertões. Isto se evidencia quando Antonio Pinto Nogueira Accioly fala-nos
...da lei [...] de 1895 e [...] 1896 [...] commetendo ao presidente do Estado a previa revisão dos orçamentos annuaes das Camaras, para [...] serem eliminadas verbas consideradas illegaes, e [...] attribuindo ao mesmo Presidente a livre nomeação dos intendetes municipaes (CEARÁ, 1º de julho de 1899; p. 24-25; como no original).


Ou Pedro Augusto Borges diz-nos:

Apezar das mais justas e sensatas ponderações para que se cingissem á sua área própria em materia tributável, as municipalidades continuaram a recalcitrar, taxando sobre as fontes de rendas da competencia do Estado (impostos sobre exportação, industria e profissões, bens e transito de mercadorias), allegando afoitamente que não podem subsistir com a exclusão dos impostos illegaes [...] (CEARÁ, 1º de julho de 1901, p. 12. Como no original).


Além da defesa dos interesses oligárquicos imediatos, a subjugação dos municípios ao poder estadual teria um efeito involuntário: acabou por fazer com que o Estado e seus agentes se fizessem muito mais presentes nos sertões distantes, e colaboraria indiretamente para o robustecimento do monopólio de poder nas mãos do poder central (Fortaleza). A “camisa-de-força” colocada na nação para barrar a marcha das forças centrípetas teve efeitos colaterais imprevisíveis: se por um lado cumpriu seu papel, freando a marcha imediata destas forças, por outro, possibilitou uma maior ingerência de Fortaleza no “habitat” dos “feudos rurais” dos interiores através do controle orçamentário das câmaras, de um maior controle judiciário e policial, e da nomeação direta de intendentes municipais. Sufocados, os grupos familiares interioranos tiveram que se submeter á oligarquia estadual; e o municipio conheceu uma maior monopolização do poder na sua arena política. Os Sousa, parentela mais influente nesta ocasião, herdariam os principais postos municipais no Ipu do inicio da República, alijando os Araujo, os Martins e outras parentelas da máquina pública[4]. 
            O processo civilizador não pôde ser contido, e a violência costumeira ocorrida no século XIX e registrada por homens como Manoel Ximenes de Aragão (1913), Antonio Bezerra de Meneses (1965), e Eusébio de Sousa (1915) como “natural” e cotidiana já não se repetia no inicio do século XX. O que teria havido na região de Ipu, Campo Grande e São Gonçalo para uma mudança tão significativa no padrão de agressividade destas populações? Muito mais do que qualquer “plano estratégico” montado por “estadistas” precoces, o refinamento de modos de viver, o avanço do autocontrole e o abrandamento do padrão de agressividade estiveram ligados ao alargamento do grau de civilização na área; alargamento cujo foco maior emanaria da inserção da área numa economia cosmopolita, da ampliação das cadeias sociais de interdependência entre as pessoas, do aumento populacional, da abertura de estadas e ferrovias etc. Pode-se dizer que foram estas mudanças que demandaram um aperfeiçoamento da aparelhagem governamental; aperfeiçoamento este que se reflete no controle da violência; controle que se traduz em autocontrole de instintos individuais etc.
            Este fenômeno também recebe o nome de “modernidade”. Sobre o avanço da modernidade – ou da “civilização”, como quer Elias, Marshall Berman (2007; p. 111) citando Marx, diz-nos que: “Tudo que é sólido desmancha no ar, tudo que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens”. Leiamos este trecho de Herculano Jose Rodrigues:

Os preconceitos e os crimes buscam os cerebros analphabetos [...] Eis em poucas palavras o effeito da ignorancia por falta da Instrução. A grande quantidade de crimes não provem tanto do mau instinto [mas] [...] da ignorancia. Não se presa a honra alheia e nem a própria, e eis a immoralidade em campo augmentando a devassidão. [...] Raro é o analfabeto que procura instruir o filho. E a sociedade olha indiferente, porque o ignorante faz parte da sociedade como um instrumento de vilanias (RODRIGUES; 1900; p. 60-61. Como no original).

Herculano repudia em sua fala a “ética da violência”; algo estava mudando nos hábitos e nos costumes das pessoas; a objetivação social de novas “estruturas de pensamento”, responsáveis pelo aumento do grau de autocontrole dos impulsos individuais (ódio, raiva, sexo, agressividade etc.) colocou em xeque a velha “ética guerreira” dos habitantes da região. Aos poucos a “justiça feita com as próprias mãos” encontrava censuras morais e barreiras legais na própria mudança do padrão de agressividade; dar vazão ao ódio, sacar da faca, estripar um rival e correr ao abrigo do patrão latifundiário deixava de ser apenas um atributo de “valentia” (e de “nobreza”) para figurar também na categoria de coisa de “cerebros analphabeto”. Aquele era um momento de choque de mundos; a realidade social “arcaica” estava em metamorfose para se adaptar ao novo universo de sentidos da “modernidade conservadora” nacional. O velho habitus da “justiça pessoal” (por que feita pelas próprias mãos), ou a “ética da “violência irredenta” eram agora desautorizadas com base no crescente monopólio da violência pelo Estado. A pressão civilizadora dos novos tempos vinha se somar à repressão coercitiva do poder central; as ilhas de poder familiar – as fazendas agropecuaristas e latifundiárias – ainda permaneceriam quase intocadas por mais um quarto de século (verdadeiras “fortalezas” do poder privado), mas seus moradores e proprietários já não ousavam desafiar abertamente ao poder legitimo do Estado.        
           

NOTAS E BIBLIOGRAFIA

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[1] UECE (Universidade Estadual do Ceará), mestrando do MAHIS (Mestrado Acadêmico em História).  
[2] A Vila Nova corresponderia ao municipio de Ipu e aos distritos de Campo Grande (hoje Guaraciaba do Norte) e São Gonçalo da Serra dos Cocos (hoje parte de Ipueiras); sobre isso leia: ARAÚJO, P. F. 1988.
[3] Sobre isso leia: MENESES, 1965; e MACEDO, 1980.
[4] Conferir em: CEARÁ (Província). Câmaras Municipais. Arquivo Público do Estado do Ceará. Fortaleza; 1866-1943; c. 97. Passim; e MARTINS, F. A. 2007, p. 21.

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