Imaginemos, por um minuto, um aventureiro que em pleno século XIX tenha desembarcado nas areias brancas das praias de Camocim, e, numa canoa, com alguns companheiros, armados de espingardas e arcabuzes, tenham subido a foz do Rio “Caracú” (o Acaraú de hoje)[1]; e depois de muito penetrarem sertão a dentro, assaltados nas margens, vez ou outra pelos Arariús, reriús, trembés e outros povos bravios, eles desembocam na antiga fazenda Caiçara (agora chamada de Vila de Sobral); local tacanho, mas já naquela época uma ilha de civilização em meio ao selva espectral da caatinga monstruosa e quase desabitada; e lá em Sobral recebem instruções para seguirem, sertão-acima, navegando sempre à noite, para despistar os selvagens e as jaguatiricas, que se escondem nas matas para atacar aos aventureiros. Depois de uma semana, os visitantes chegam ao imenso - quase descomunal – paredão da Ibiapaba. Ali, de repente, diante da muralha da natureza, a civilização termina e a selva de defende da corsa do europeu desbravador. Encima um planalto ainda virgem (habitado por onças e índios); em baixo a planície onde uma precária igrejinha de taipa serve de “bandeira de conquista” da civilização sobre a barbárie dos nativos. Virada de costas para o vale, a igrejinha está já rodeada de uma centena de casinhas de taipa e de palha; e de seu lado direito algumas sepulturas de “valentes” que ali tombaram; em seu lado esquerdo o rio Puçaba (era este o primeiro nome de nosso rio)[2]; os visitantes se deparam, de repente, com a população daquela época; era,m homens brutos, se dermos créditos aos documentos da época:
“Tamboril tem produzido homens notáveis, entre estes o coronel Diogo Lopes de Araújo Sales, que o Ministro da Agricultura, (...) em 1855 dizia não conhecer no país mais hábil catequista dos índios. À sua espada encantada, que não podia soltar, pelo receio de exterminá-los de um só golpe, deveu ele escapar mais de uma vez às sedições dos selvagens. Seus serviços nessa arriscada empresa foram de feitos relevantes.”[3]
“Eram por demais turbulentos (...) [e] sanguinários os primeiros povoadore desta parte da província, (...) os homens mais influentes (...) percorriam com bandos armados da serra ao vale e do vale à serra, decidindo de tudo [na] (...) lógica do bacamarte. Esses facínoras traziam em sobressalto Tamboril e (...) Príncipe Imperial (Crateús), Independência, Boa Viagem, Pedra Branca, Santa Quitéria e Ipu.”[4]
Quase tão bárbaros quanto os selvagens que eles caçavam com tiros de espingarda e mosquetão, os moradores do Ipu, ali, isolados e vivendo entregues a própria sorte, haviam se tornado homens brutos e sanguinários. Não tendo recursos humanos ou materiais para ocupar as terras do “Ciará Grande” (e a região de Ipu esta neste meio), Vossa Majestade El’Rei de Portugal (e depois da independência, D. Pedro I e D. Pedro II) delegava poderes quase absolutos para seus súditos que por aqui vinham construir a “civilização”. Os colonos que viriam povoar os sertões do Ipu tinham licença para matar, prender, soltar, julgar, perdoar, e condenar, principalmente aos índios, negros e/ou brancos pobres que lhes deviam obediência; foi assim que nasceu a conhecida prepotência de nossas elites e a exagerada submissão de nossos “cabras”! Com a independência, em 1822, D. Pedro I, após esmagar os confederados do Equador e outras rebeliões do “Norte” do Brasil, passou a delegar poderes de polícia aos fazendeiros e seus filhos; a Guarda Nacional, a Câmara de Vereadores, a Igreja, o judiciário local, o delegado de polícia eram instituições controladas pelas primeiras famílias patriarcais da região (os Mello Marinho, os Araújo, os Galvão, os Corrêa, os Carvalho, os Sousa, os Aragão e muitas outras, eram os “donos do Ipu). Os dois grupos políticos em disputa eram os Liberais e os Conservadores; os Liberais eram representados pelo Padre Correa e por Vicente Ferreira de Lima; os Conservadores eram representados principalmente pelos Mourões, poderosa oligarquia parental sediada na Serra dos Cocos. A política se fazia com a violência e pela violência.
Na Ipu Grande aldeia, vila e depois cidade fora a Igreja o epicentro de onde se irradiou a ocupação do espaço físico. Primeiro como “acampamento” militar e religioso, depois como “porta aberta para o Céu”, e por ultimo como “imã da civilização”, a Igreja, ao lado da Guarda Nacional, fora a instituição mais atuante no “forjamento” da índole do homem dos sertões; fora ali, frente ao paredão da Serra Grande que a civilização conteve seu avanço e assentou acampamento diante da muralha desafiadora que serviu de refúgio aos povos nativos. Ali se travou desde o início uma luta pelo controle do símbolo, pois o “valle” onde fora instalado a capela “era elle [...] local das festas da tribu imperante nas cercanias, e mais, para enterramento dos mortos, o que faziam encerrando os cadaveres em féretros caprichosamente feitos de barro”[5].
Nós ipuenses, temos na nossa índole desde a petulância dos velhos coronéis da Guarda Nacional à submissão canina de escravos indígenas e africanos. Feito por poucos e para poucos, nosso Estado é a resultante histórica deste processo civilizatório aberrante: Nas origens da nossa formação social estão presentes a grande propriedade territorial e a escravidão, constituindo-se assim uma ordem senhorial e escravocrata que, a ferro e fogo, ensinou negros, mestiços e brancos a se ajoelhar e pedir favores (...) [sem] se imaginar semelhantes e, muito menos, iguais em direito (ou deveres) (...). Na dialética entre eles se forja uma cultura de dependência mútua, que inibe os processos de autonomia (...). Em seu lugar, forjaram-se a arrogância das elites e a timidez, a insegurança (...) das classes populares[6].
Prevalecia nos sertões do Ipu a “lei do mais forte”! A câmara era “a prefeitura e o fórum” ao mesmo tempo; os vereadores prendiam, soltavam julgavam etc.! As autoridades eram homens violentos (e não poderia ser diferente) por que o poder era entendido como “um exercício da violência”; para garantir terras e prestígio era preciso proteger-se de ouros grupos rivais, escravizar negros e indígenas, esmagar os descontentes e subjugar a revolta dos excluídos; para isso fazia-se necessário montar parentela (grupos de homens armados, dispostos a matar e a morrer pelo patrão), e declarar guerra aos adversários. É dentro deste contexto que vamos entender as guerras sangrentas travadas entre as elites do Ipu e de Ipueiras na metade do século XIX; quando a família Mourão declarou Guerra a seus parentes Mellos do Ipu; ocasião em que a cadeia foi invadida, e dezenas de assassinatos e prisões aconteceram em ambos os lados. Na época (entre 1830 a 1840), o poder central procura se fortalecer após a abdicação de D. Pedro I (em 7 de abril de 1831) aliando-se as elites rurais dos sertões dos Inhamuns e da Serra da Ibiapaba, dando-lhes poderes político e administrativos sobre a máquina do Estado ora recrutando uma ora outra facção das mesmas famílias “tradicionais”; as autoridades federais e provinciais procuravam garantir assim a região como “curral-eleitoral” e reserva de braços armados para a Guarda Nacional e sufocar as revoltas nascidas no período regencial.
A sede da vila era Guaraciaba do Norte; a sede da Igreja era São Gonçalo; o Ipu era apenas uma aldeia paupérrima e desprestigiada, com uma igrejinha de pau-a-pique no centro, construída encima de um cemitério indígena, e margeada pelas águas límpidas do Ipuçaba. Mas a sorte estava de nosso lado; fomos favorecidos pela geografia e pela articulação de Mourões e Mello, que passaram a desejar a transferência da sede da vila para o Ipu: com o crescimento do comércio de grãos e animais entre o sertão-central e em direção a Sobral e do litoral norte de Granja e Camocim, as fazendas agropecuaristas de nossa área passaram a atrair a atenção dos fazendeiros. Não havia estrada transitável ligando o Ipu e a Serra da Ibiapaba. Como os animais de carga poderiam descer a serra? As tropas de mulas, carregadas de farinha, rapadura, milho e as boiadas simplesmente não podiam descer pela Escada de Pedras (velha trilha indígena, construída antes da chegada dos europeus), ou pela Estrada Real (estrada do Boqueirão); muitos animais caiam nos abismos, engolidos por crateras monstruosas, antes de chegarem a seus destinos. A serra da Ibiapaba era uma muralha natural que servia de barreia à civilização daquela área.
Criminosos eram contratados pelas facções para serem “cabos-eleitorais” e garantir a lealdade da população aos líderes oligárquicos; ninguém tinha coragem de votar contra o grupo dominante. O Presidente da Câmara presidia a votação (neste tempo não existia a figura do prefeito, que só será criada na República, em 1914). O juiz, nomeado pelo “governador”, defendia sempre a facção que apoiasse ao governo do estado; e esta facção protegia assassinos e canalhas para amedrontar aos adversários e aos “eleitores rebeldes”. Mas e se o sujeito fosse da oposição? Aí, meu camarada, a coisa ficava preta para ele! É por isso que as elites faziam o possível e o impossível para se manterem do lado do governo! Com a ascensão do Padre Alencar ao governo do estado, os Mourões, conservadores, serão levados a ser oposição ao governo, e daí nascerá a guerra entre esta oligarquia e os Melo, pela sede da vila do Ipu, em 1846. Momento em que as duas facções promoviam verdadeiras guerras privadas umas contra as outras, levando terror, morte e violência para as vilas e cidades de todo sertão central.
2 - BRIGA PELA SEDE DA VILA
Quando, em 1840, ocorreu o Golpe da Maior Idade, conduzido o jovem D. Pedro II com apenas 14 anos ao trono (o certo seria aos 18 anos), o Partido Liberal ascende ao poder político, e ocorre a derrubada de todos os filiados do Partido Consertador. No Ceará o Padre José Martiniano de Alencar (pai do escritor José de Alencar[7]) então nomeado “Presidente do Ceará”, ascende ao poder e passa a promover uma acirrada perseguição aos seus inimigos políticos (os conservadores, e no Ipu, os Mourões). Ipu, Ipueiras e Guaraciaba era um “reduto conservador” governado pelos coronéis oriundos das famílias Melo, Mourão, Barros, Araújo, Martins e outros.
O padre Alencar dará Carta branca a Vicente Lopes Vidal de Negreiros, mais conhecido como Vicente da Caminhadeira, valentão afamado, chefe de bando de cangaceiros, para reunir “cabras” e eliminar os Mourões de Ipueiras. Diz-nos Macedo (p.80) que “O Caminhadeira”, quando em combate, recitava estes versos em voz alta:
“Quando o canário abre o bico
Turva-se o tempo, meu bem,
Chore quem tem de chorar,
Que não sou pai de ninguém...”.
“Canário” era o nome que Vicente dera a seu velho rifre boca-de-sino, que ele usava em sua lutas e arengas pessoais; ainda segundo Nertan, Vicente da Caminhadeira assassinara Manoel dos Ferros Mourão, irmão de Alexandre, nas novenas da Matriz de São Gonçalo da Serra dos Cocos; estava declarada a guerra entre ele e Alexandre. Estes dois homens se cassariam até quase a morte.
Neste ínterim, foi aí que fora articulado em torno da liderança do coronel Francisco Paulino Galvão (líder dos Mourões, Melo e Araújo de Ipueiras), uma estratégia para transferira cede da vila de Vila Nova (Guaraciaba) para o Ipu (o Ipu prometia bem maiores vantagens do que a acidentada matriz de São Gonçalo, ou a velha Vila de Guaraciaba). Isto seria um golpe contra o poder hegemônico centralizado em Ipueiras e em Guaraciaba e concentrado nas mãos das elites daquelas localidades: parece-me que os conservadores do Ipu articulam a transferência da sede da vila de Guaraciaba para o “Ipu Grande” e a sede da Igreja de São Gonçalo para a Igrejinha! Mas esta informação se choca com este trecho legado por Alexandre da Silva Mourão, notório Conservador: “Conseguimos passar Vila Nova para Ipu e este para cabeça de comarca, e organizar a Guarda Nacional, com um esquadrão de cavalaria”.[8] Se esta informação for verdadeira, isso faz de Alexandre da Silva Mourão, notório criminoso e precursor do cangaço, e a seus parentes (entre estes o coronel Paulino Galvão), os verdadeiros fundadores da Vila do Ipu em 1840 (isso será discutindo pelo historiador Reginaldo Alves de Araújo, posteriormente).
A transformação do Ipu em “cabeça de comarca” e o fato de “estar por cima” na política, com o Partido Conservador dominando a nível provincial, garantiram a Alexandre Mourão e a sua família algumas regalias e favores: “Respondemos a Júri na capital e fomos absorvidos; o Presidente (do Ceará) deu ordem para tirar o destacamento (militar) de Vila Nova (Guaraciaba) e substituir por outro” (Idem). Por pouco tempo, ficaram os Mourões livres de perseguição da justiça e da polícia. Assim, as acusações de assassinato, feitas contra Alexandre da Silva mourão, um de nossos “heróis fundadores”, foram consideradas “infundadas” (por pouco tempo, pois logo depois os Liberais reassumem, e Alexandre volta a seu considerado um “criminoso foragido da justiça”).
Mas quem foi Alexandre Mourão? É o próprio Alexandre quem nos escreve: “Minha vida laboriosa sempre foi cortada por desgostos e aflições”. Quando este abandona os estudos diz-nos que “Meu pai levado de desgosto por eu não querer continuar nos estudos, disse-me que eu deveria experimentar o peso que carrega quem planta e cria”. Foram muitas e muitas lutas, caçando, rastejando, procurando, perguntando, até que um dia Alexandre e seus “cabras” se encontraram frete à frete com Vicente e seus cangaceiros; cercando seu inimigo, Alexandre diz-nos que: “Vicente Lopes, logo nos primeiros tiros, fugiu deixando o irmão e companheiros em luta desenfreada” (Macedo, 204).
Mas falemos da fundação da vila do Ipu Grande: por enquanto podemos antecipar que o Ipu foi “emancipado do Município de Guaraciaba do Norte pela lei nº 200, de 26.08.1840, que transferiu a sede do Município para o núcleo Ipú Grane, então elevado á vila com o nome de Vila Nova do Ipu Grande” Mas um ano depois esta facção caiu, e ocorreu a derrubada desta lei, que foi “Revogada (...) pela de nº 230, de 12.01.1841”; Mas logo em seguida “foi novamente restaurada a sede da vila em 03 de dezembro de1842. Chamado primitivamente de Aldeia de São João (sic).”[9] Ou seja, a disputa pela primazia de ser a sede da Vila foi tão intensa que logo após ocorrer a transferência, com a queda do grupo que a efetivou, ocorreu o recuo da lei, com a dissolução desta medida e o retorno da sede para Guaraciaba. Mas ocorreu “o recuo do recuo”, e as oligarquias do Ipu conseguem se impor a suas irmãs da Serra dos Cocos e de Guaraciaba entre uma queda e uma subida dos liberais e dos Conservadores ao poder (os Mourões saíram perdendo). Na disputa pelo controle da máquina pública entre Liberais e Conservadores, a transferência da sede da vila para a povoação de “Vila Nova do Ipu Grande” veio significar um duro golpe nos Mourões, de São Gonçalo e de Campo Grande. Já as oligarquias sediadas no Ipu ficaram de cima; os Melo, os Araújo, os Galvão, e dentre estes o padre Corrêa, irão construir seu poderio sobre Guaraciaba e Ipueiras. Atirados à condição de “criminosos”, os Mourões (e principalmente Alexandre) não mais poderão retornar a “legalidade”; cassados pelos liberais, pelas tropas do governo do estado e pelos “cabras” de Vicente da Caminhadeira, o clã cairá em desgraça, assistindo a subida de seus antagonistas.
A transferência da sede da Vila[10] significaria hoje transferir da prefeitura, da delegacia e do fórum da cidade para um de seus distritos (imagine o impacto desta medida para estas localidades!); era uma disputa pela ocupação destes postos de poder; disputa pelo poder de julgar, prender, soltar e escrever documentos; disputa esta que a elite do Ipu saiu ganhando, mas não sem uma “guerra” declarada, muito sangue, manipulação de leis e sofrimento de todos os lados! Vejamos o que o historiador Antonio Bezerra nos deixou em depoimento: “Por motivos políticos, o cartório e demais papéis de Campo Grande (depois Vila Nova d’El Rei), que deveriam ser transferidos para a nova sede (Ipu), em virtude das leis de 1840 e 1841, naufragaram, os que convinham, na passagem do riacho Ipuçaba! (sic)” (Bezerra; 205). E, desta forma, muitos documentos (escrituras de terra, principalmente) foram forjados ou reescritos, com outros donos. Sobre isso, leiamos trecho da historiadora Mara Valdemira Coelho: “Em virtude de haver desaparecido a escritura pública de doação da (...) légua e terra, Patrimônio de São Sebastião, Dr. Vitorino do Rego Toscano Barreto, juiz de direito da Comarca de Ipu-Vila, resolveu em portaria de 29/08/1856 determinar que se fizesse a demarcação da referida légua de terra” (Maria Valdemira Coelho, 1985, p. 24). Ao fim das refregas, os Mourões perderam suas terras, seus cargos, seus poderes, e saíram arruinados desta guerra.
Nesta “briga de cachorro grande”, os precários tapuias indígenas da velha aldeia do São João perderam bem mais o que qualquer punhado de terras; perderam a própria identidade; esquecidos e aniquilados cultural e fisicamente, serão reduzidos a “cabras” e a “cunhãs” nas terras que outrora foram deles; tomados como “selvagens”, “bestas de carga” e mão-de-obra semi-escrava dos “coronéis” seus algozes e compadres, misturar-se-ão ao “povo miúdo”, como agregados nas terras dos Araújo, Melo, Mourões, Aragão, Ximenes etc. herdando destes o sobrenome; ficando mesmo impossível de se traçar qualquer distinção genealógica entre estes e seus antigos algozes. O crime contra estes “bárbaros” não ficará registrado pela história, e seus descendentes desconhecem qualquer ligação com este passado enterrado e esquecido.
Já os fazendeiros, havia entre estas elites, um auto gral de parentesco; Araújo, Martins, Melo, Mourão Galvão, Barros, Alves, Ximenes, têm todos uma mesma ramificação familiar: os colonizadores pioneiros, 150 anos antes, que haviam recebido da coroa portuguesa data de Sesmaria na região de São Gonçalo da Serrados Cocos, dividiram-se entre estas famílias; estas elites, dada a inércia das leis e a perpetuação dos privilégios, até hoje seus descendentes agarram as tetas das prefeituras, ocupam os cargos do judiciário, das câmaras de vereadores, são médicos, advogados, juízes, promotores e delegados.
De um lado os Conservadores (onde estava Alexandre Mourão e seus parentes), de outro os Liberais, onde se somaria o padre Correia e parte de outros aliados (dentre estes, alguns membros da família Mourão, como o delegado Manoel Ribeiro Melo). “O Delegado, homem de paixões fortes e ignorantes, deixava conduzir-se pelo seu pastor (o padre Correia) e cedendo as sugestões deste, mandou prender e meter no tronco, acintosamente, João Ribeiro Mourão, Raimundo Gadelha e outros”(Macedo, p. 188); todos da parentela dos Mourões, de Ipueiras.
Em 1845[11], “Procurando anular a ação política de Paulino Galvão e dos Melos, que dominavam o Ipu, conseguiram os Mourões forjicar na Vila de Príncipe Imperial (Crateús), onde tinham influência política, um processo criminal contra aquele (Coronel Paulino Galvão) e o Delegado Manoel Ribeiro Melo. Avisados do plano, o Coronel (...) e o Delegado instauram por sua vez idêntico processo contra os Mourões, no termo do Ipu, envolvendo no mesmo o juiz municipal Pedro Martins de Araújo Veras e o tabelião Macambira, parciais dos Mourões”[12].
Mas a prisão dos liberais do Ipu (Paulino Galvão e o delegado Melo), pretendidas pelos Mourões (Vicente e seus irmãos) em Ipueiras, fora medida nula, pois não saiu do papel! Em contrapartida, contando com a simpatia do poder central, a oligarquia capitaneada por Paulino Galvão obtém êxito frente a seus rivais ipueirenses: “Vê-se que as prisões dos Mourões, ordenadas pelo Cel. Paulino Galvão e pelo Delegado Manoel Ribeiro Melo, e efetuadas no Sítio Lagoa, próximo ao Ipu, produziu grande indignação no seio do violento clã...” (Macedo, 115). Contando com o aparado repressor do Estado e com o apoio do partido liberal, os Melos, aliando-se ao padre Correia, conseguem mais esta façanha: por no tronco e na cadeia membros da família dos Mourões de Ipueiras. Estava declarada a guerra!
A resposta do clã não tardaria: “No dia 25 (de janeiro de 1846) (...) José de Barros Mourão, Alexandre da Silva Mourão, e Eufrasino da Silva Mourão com uma porção de homens atacam a cadeia, (...) põem em liberdade os irmãos, cunhados e amigos”.(Idem-115) No ataque morre José de Barros Mourão, chefe do bando assaltante; e, para vingar a morte do líder, os criminosos vão até a fazenda do delegado Melo e o trucidam diante de sua família com “Um tiro na coxa, um tiro na extremidade do membro viril, uma estocada no ombro e um tiro no braço” (Macedo, p.146).
Após estes atos de barbárie, as autoridades estaduais fecharam o cerco aos Mourões, prendendo e eliminando os mais belicosos deste clã, que tiveram propriedades confiscadas e as parentelas de jagunços desmobilizados pela polícia. Aliando-se ao padre Correia e a Paulino Galvão, as oligarquias do Ipu haviam ganho a guerra contra as oligarquias de Ipueiras e Guaraciaba, e a perseguição contra os coronéis-guerreiro da família Mourão fora intensificada. Eram novos tempos! O Estado nacional centralizado acabaria por impor sua autoridade a estes violentos refratários do período colonial! O poder privado, que antes estava acima da lei, seria aos poucos submetido pelo poder de polícia emanante de Fortaleza e do Rio de Janeiro! A república brasileira está prestes a nascer; e a paz reinaria entre as famílias proprietárias da região por algum tempo. A partir daí, nossas elites aprenderão que não se pode “pelejar” contra o Estado, pois como bem disse o próprio Alexandre Mourão “É dar murro em ponta de faca!”.
Depois destes tristes episódios, o Ipu veio se firmar como sede, pois a povoação crescia como “entreposto comercial” para a produção da Serra e do Sertão, “exportando” algodão e gêneros agropecuários para Sobral e Camocim (e não teria sentido retirar a sede da vila de nossa cidade); e as autoridades federais e estaduais conseguiram aos poucos impor a centralização política aos beligerantes coronéis dos sertões do Ipu e da Ibiapaba; movendo contra o clã dos Mourões pesadas perseguições oficiais, que culminaria com a prisão de Alexandre da Silva Mourão (provável assassino do delegado referido antes e de um de seus escravos) e com a morte da maior parte de seus violentos e combativos irmãos de parentela e seus cabras. Alexandre amargará anos de prisão na cadeia pública de Fortaleza. Arruinados, os Mourões perderam a guerra contra o padre Correia e os seus aliados do Ipu.
Todas estes personalidades, Alexandre da Silva Mourão, o padre Francisco Correia de Carvalho e Silva, o delegado Manoel Ribeiro de Melo, Francisco Paulino Galvão, dentre muitos outros, fazem parte de nossa história, e são, de algum modo, nossos antepassados. Eram brutos, violentos e sanguinários, mas não poderia ser diferente, pois eram homens de seu tempo; tempo em que para fazer política era necessário matar, para não morrer, roubar, para não ser roubado. Derrotados, espoliados de suas terras e de seu poder, presos, caçados como criminosos, e exterminados como cancros, os Mourões desaparecerão da cena política do Ipu até o presente. Já os Melo, os Correia, os Araújo, os Martins (as outras cabeças da hidra!) e outros ramos destas parentelas herdarão a cidade. O velho padre Francisco Correia de Carvalho e Silva construirá um “reinado”, num momento em que Estado e Igreja estavam atrelados, o velho sacerdote se transformará na mais esperta e influente raposa de nossa política; dominando, ele e seus aliados e parentes a cena política até o limiar do novo século que de descortina; morrerá no Ipu em 13 de junho de 1881 (Valdemira, p. 24); mas não sem constituir numerosa prole, enveredar-se pela política, e traçar o esboço de uma nova e “moderna” igreja matriz que ele não verá feita em vida, igreja que até hoje marca de modo indelével a alma de todos os ipuenses e o traçado de nossas ruas; mas isso é Outra História!
Autor: Raimundo Arcanjo
[1] O temo significa “Rio das Garças” em tupi.
[2] “Puçaba” quer dizer “rio grande” em tupi (o sufixo “Aba” é um aumentativo). Só mais tarde o rio passará a ser chamado de Ipuçaba.
[3] - MENESES, Antônio Bezerra de. Notas de Viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.
[4] - MENESES, Antonio Bezerra de. Notas de Viagem, Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza, 1965. Pág. 205.
[5] SOUSA, Eusébio de; P. 155.
[6] FERREIRA, Nilda Tavares. Cidadania, Uma Questão para a Educação. 3ª ed. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, 1993. Pág. 202.
[7] -Naquela época era muito comum padre constituir família, pois a opção pelo sacerdócio era uma das poucas formas de se conquistar poder e prestígio (o Estado era atrelado a Igreja, e ser padre equivaleria a ser “funcionário público” para estes homens), por isso padres como Alencar, Mororó, e Corrêa constituíram família.
[8] Macedo, Nertan; O Bacamarte dos Mourões; Editora Renes; Rio de Janeiro; 1965; p. 221.
[9]- Falcão, Mário Fábio Pelúcio. Pequeno dicionário toponímico do Ceará. Fort. Quadricolor, 1993, pág.50. Há evidencias de que antes de se chamar Ipu, a aldeia que nos deu origem chamou-se também “Aldeia de São João”, e havia dois núcleos; o da capela católica da Igrejinha, e o núcleo indígena localizado na Várzea do Jiló; para atrair a atenção dos selvagens da serra, a capela da Igrejinha tinha a frente para a Bica; de cima da serra, os selvagens certamente acharam que aquela construção (a igrejinha) feita pelos padres, era sagrada e haveria nela “algo se sobrenatural”, pois, segundo Eusébio de Sousa, fora ela feita encima de um cemitério indígena (Sousa, Eusébio de, Um pouco de História (Chronica do Ipu), Rev. do Inst. do Ceará, tomo XXIX; ano XXIX, 1915, p. 155).
[10] - Apenas a título de curiosidade, só em 1879 -39 anos mais tarde -, Guaraciaba irá se emancipar do Ipu, reconquistando sua antiga autonomia. É claro que o comércio algodoeiro e de gêneros agropecuários da serra e do sertão em volta, concentrado principalmente no Ipu, também vai contribuir para a decisão da transferência da sede da vila, mas a lei fora motivado principalmente pela pressão dos liberais do Ipu, em conluio com o poder provincial, visando assim enfraquecer os conservadores de Ipueiras-guaraciaba.
[11] -Nertan Macedo, em “O Bacamarte dos Mourões” diz que os Mourões teriam praticado cerca de 50 mortes, incontáveis espancamentos e outras formas de violência contra inimigos e adversários políticos; não foi atoa que com a ascensão do Padre Alencar ao poder provincial (1834-37 e em 1840-41), fora eleito como prioridade pelo líder Liberal pacificar a Ibiapaba e debelar o poder e a influencia dos violentos Conservadores da Ibiapaba (os Mourões). Uma pena que o autor não cita no livro as atrocidades cometidas pelos liberais do Ipu e região contra os Mourões e sua parentela, que sem dúvida foram muitas, pois é sabido que Alencar punia os crimes praticados pelos adversários, mas ignorava os crimes de seus aliados; desta forma, um outro chefe de parentela, Vicente Lopes Vidal, mais conhecido como Vicente da Caminhadeira, inimigo mortal dos Mourões, era chamado pelo padre e por Macedo de “um bravo e dedicado partidário”; mas foi, sem dúvida, mais um assassino de adversários e desafetos; em fim, um homem de seu tempo.
[12] -Macedo, Nertan; O Bacamarte dos Mourões. Pág. 113 e 79.
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