A HERANÇA IMATERIAL
Levi, Giovann Battista.
A herança imaterial: tragetória de um exorcista no Piemonte do século XVII/Giovan Levi; prefácio de Facques Revel; tradução Cynthia Marques de Oliveira. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
A Herança Imaterial é um livro inovador e fundamental para quem pretende construir uma pesquisa que procure dar conta do quotidiano de uma sociedade qualquer. Ao introduzir como fonte de pesquisa indícios tão pouco substanciais, como certidões de casamento, notariais, batismo, de óbitos, de nascimento e testamentos; atas de “cura” de exorcismo praticadas pelo padre referido, estatísticas de sagras, de inventários, de estratégias de uso da terra etc., pôde o autor, na redução de escala característica da micro-história, dar conta de um universo social que a historiografia tradicional não enxergara: o cotidiano dos moradores da pequena aldeia de Santena serial um reflexo maior do mundo mental dentro do quais as estratégias sócias e maiores se revelariam.
O maior desafio enfrentado pelo autor – e exposto em seu livro de forma magistral – teria sido o de tirar do singular, do cotidiano e do trivial garimpado na montanha de dados preservados sobre os moradores da pequena aldeia de Santena uma contribuição vital para o entendimento do universo social maior dentro do qual os atores sócias viveram suas vidas, e logicamente, botaram em prática suas estratégias de sobrevivência e de convívio; possibilitando assim leituras inovadoras de uma realidade social dada, a micro-história (e particularmente, A Herança Imaterial de Giovanni Levi) contribuiu para alargar as possibilidades de leitura do real-histórico.
O método posto em prática por Giovanni Levi é claro: cadenciando informações fragmentarias – os indícios, referidos por Carlo Ginzburg - banais de pessoas comuns, que vivem na aldeia de Santena no século XVII (informações que vistas separadamente e a primeira vista parecem sem muita importância e sem nenhuma relevância concreta), uma faceta inédita e inovadora do social aí se revela; tendências, mudanças de atitudes coletivas, mudanças de cursos dos acontecimentos etc. vem dar-nos conta de aspectos insuspeitos da realidade social investigada; aspectos que transitam entre o particular e o trivial para o coletivo e o geral.
Muito mais do que possibilitar a reconstrução de estatísticas que vem dar conta de aspectos individuais ou singulares do real, a empreitada da micro-análise vem contribuir, como o esquadilhamento das “migalhas” do cotidiano, para percebermos aquilo que Levi chama de “mundo mental” das populações analisadas; as estruturas de pensamento; as estratégias grupais; as táticas familiares de perpetuação de prestígios e poderes invisíveis; em fim, expondo aquilo que Giovanni Levi chama de “herança imaterial” desta realidade sócio-histórica.
Ao esmiuçar as “migalhas” do cotidiano da população de Santena e de sua região, Levi vem dar conta de uma compreensão estrutural daquela sociedade: buscando captar aspectos do cotidiano, pôde ele tirar conclusões gerais a partir de aspectos singulares. Fora, notemos, a leitura dada ao material – a fabricação da fonte – característica da micro-análise aplicada pelo autor, que possibilitou a revelação de aspectos “mudos’ e latentes no material “in natura”. Para tanto, fora necessário filtrar em meio ao amontoado de migalhas uma analise e uma reflexão que possa fornecer-nos uma compreensão do todo social por trás das informações triviais ali reunidas. E Levi soube magistralmente retirar dos “entulhos” e da “migalhas” do cotidiano daquela população aspectos reveladores de seu universo mental. As estratégias endogâmicas das famílias patriarcais, a crença no poder exorcista do padre Giovan Battista Chiesa, a insegurança social, os mecanismos de solidariedade grupal, a estratificação social, as estratégias de classe etc., fazem parte de um conjunto de um todo social em que os atores pensavam o real e respondiam de forma especifica aos desafios mundanos do dia a dia. Dentro deste real-social, os vestígios deixados pelas pessoas que lá viveram são indícios que o pesquisador pode vir a utilizar para dar conta daquela realidade. Os papeais cartoriais, as curas de exorcismo, as informações sobre estratégias matrimoniais etc. fazem parte de um universo social específico; e as respostas dadas pelas pessoas são reflexos deste real-social maior. É a isso que o autor chama, obviamente, de “herança imaterial.
Pelo incrível poder de síntese, achei por bem, citar aqui esta passagem do livro de Levi, quando o autor descreve as tragédias pessoas da vida de Maria Cavagliato:
Maria, já velha, não apareceu mais nos documentos. Ela, provavelmente, se perguntava o prquê de sua falta de sorte e encontrou a resposta no demônio que a possuía e contra o qual ela se fez exorcizar por Giovan Battist Chiesa. No caderninho das libertações, ela foi registrada na data de 17 de julho de 1697 como “obsessa”. (Levi; 121)
Neste ponto o autor nos revela seu incrível poder de síntese –aonde o particular vem ser evidência do geral – quando pela analise das tragédias individuais desta velha senhora, encontramos a ponte que liga as ações e reações pessoais à conjuntura maior do social; onde os indivíduos se acham emersos num horizonte amplo de costumes e de praticas dos quais o cotidiano é um reflexo em escala menor.
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