quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Síntese do livro: O RETORNO DE MARTIN GUERRE, de Natalle Zemon Davis. (micro-história)

O RETORNO DE MARTIN GUERRE


Davis, Natalle Zemon.
O retorno de Martin Guerre/Natalle Zemon Davis; tradução /Denise Bottamann. – Rio de Janeiro; Paz e Guerra, 1987.




            O Retorno de Martin Guerre, de Natalle Zemom Davis, é destes livros em que a leitura não é maçante nem cansativa; ao contrário, é prazerosa e fluida. Talvez pela prática de produção de roteiros para o cinema, a autora soube fugir das fórmulas prontas tradicionais da produção da historiografia (ainda em tempos de predomínio dos paradigmas marxistas e/ou economicistas). A fluidez, certo descritivismo despojado e mesmo “coloquial”, uma abertura para a sexualidade (ou será para a sensualidade?), permitiu a autora dar conta de aspectos e pormenores que se revelam de fundamental importância para o desvelamento dos costumes e das ações, reações e dos pensamentos de seus “personagens” ( e digo “personagens por que no livro de Natalle, Martin Guerre –  o verdadeiro e o falso, Arnaud du Tilh – sua esposa Bertrande de Rols, e demais personagens estão expostas pela autora de modo a darem ao seu livro um caráter de romance de ficção e de narrativa despojada sem no entanto deixar de ser história e das de melhor qualidade. Sem fugir à uma certa “estrutura econômica” (dentro da qual a autora colocou os seus sujeitos e concentrou a sua narrativa), Natalle soube expor e apresentar a sua trama de modo a incorporar um caráter inesperado e imprevisível; libertando-se dos condicionamentos da macro-análise estrutural e das deformações do macro sobre o cotidiano das pessoas estudadas. A própria aldeia de Artigat, o avanço do protestantismo não estão separados por fronteiras definidas, nem são condicionantes ou condicionados das ações dos indivíduos de modo inescapável; os seus atores são jogados dentro do cenário da aldeia e região como que livres e soltos, mas sem deixar de se ligarem às idéias e às influências que “pairavam no ar” naquele momento histórico específico.     
            Ao trazer para a esfera da análise historiográfica o caso do camponês Martin Guerre, que em pleno século XVII, após casar-se com a jovem e bela Bertrande de Rols fora declarado impotente, abandonara a esposa e a aldeia, e teve o seu lugar ocupado por um impostor, que lhe roubara o nome e a posição, Zemon Davis operou a produção e a investigação historiográfica  encima de materiais nem sempre comuns e seguros; por isso mesmo, pode a autora incorporar a seu texto um certo caráter investigativo e narrativo em que o incerto e o hipotético – retirados da literatura ficcional, do anedotário popular, das narrativas populares etc. - puderam conviver harmoniosamente com os dados acrescidos de farta documentação cartorial, de inventários, testamentos, cartas pessoais, listas de óbitos, etc., para juntos servir de substrato para a despojada narrativa de O Retorno de Martin Guerre, sem que um inviabilize ao outro. Assim deste modo, não apenas os relatos populares (preservados na literatura popular ou “acadêmica”), são levados em conta na reconstituição dos fatos feito pela autora, mas eles um subsídio considerável a se somar a documentação oficial e a ama boa dose de imaginação especulativa, vitais para que aspectos dinâmicos e vivazes do cotidiano e dos costumes das pessoas estadas pudessem se revelar.  A boa esposa, passiva e obediente, casada antes de ser cortejada, mas festas de aldeia, não parece na narrativa de Davis de forma passiva; Bertrande desenvolve suas estratégias de sobrevivência num mundo masculino que a quer moldar enquanto mulher e enquanto mãe. Ela não está estereotipada, traça estratégias, apropria-se de poderes moleculares (a expressão não é da autora, mas pegada de empréstimo de Michel de certeau) do cotidiano, que lhe permitiram re-significar papéis e impor uma resistência passivo-ativa para aquém das estratégias maiores dos poderes e dos papéis socialmente configurados.  Chega um momento em que a autora se permite ficcionar abertaente sobre um encontro entre os dos Martin (antes de Arnaud du Tilh tomar o lugar de Martin Guerre), mas deixa isso bem claro enquanto ficção e especulação; fora um mero recurso estilístico, que enriquece a narrativa e traz uma possibilidade de diálogo um tanto “incomum” entre o profissional da história e os leitores (fez-lo para prender a atenção do leitor?) O certo é que conseguiu envolver-nos de forma muito mais cúmplice no emaranhado caótico de possibilidades e do inesperado da trama.
            Com estilo elegante e literário, Natalle Zemon Davis soube, bem antes do desprestígio dos paradigmas estruturastes e deterministas herdeiros do marxismo e do predomínio da história econômica, dar visibilidade a aspetos culturais e cotidianos das vidas dos habitantes de Artigat e região, envolvida na trama inusitada do “falso Martin Guerre”, possibilitando ao coloquial, ao cotidiano e ao prosaico um lugar garantido na reconstituição historiográfica. Ao seu modo encantador, O Retorno de Martin Guerre vem dar conta do jogo “vivo” das relações humanas dentro do universo maior da macro-analise. A autora não nega o macro (pelo menos enquanto condicionante do “habitat” social dos indivíduos); mas ao dar mobilidade e liberdade de ações a seus personagens sem se reportar de forma categórica aos condicionamentos de comportamento e de idéias de uma “época”, ela nos permite perceber o cotidiano da pequena aldeia de Artigar e região de modo muito diferente da visão pré-concebida que temos da vida e do dia a dia das pessoas que viveram e morreram naquele período.  É, assim, um livro que quebra estereótipos e traz oxigênio para a historiografia.     


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