Há quatro anos, quem imaginaria que “a máquina de ganhar eleições no Ipu”, construída pelo grupo dos cururus, sofreria algum dia uma derrota? A predominância era tanta que não passaria pela cabeça de ninguém que tal grupo sofreria uma tão fragorosa derrota em um tão curto espaço de tempo.
A partir de seu líder, o famigerado empresário do setor de transportes, montou-se uma estrutura de dominação clientelista no Ipu que lhes garantiu o controle da sociedade pôr praticamente doze longos anos. Da câmara de vereadores aos comerciantes do centro; dos líderes comunitários aos radialistas; dos feirantes aos moradores dos subúrbios; do judiciário aos criadores de gado; todas as classes sociais do Ipu ( dos mais ricos aos mais pobres ) recebiam favores ou mantinham laços de lealdade para com o grupo do empresário. Os mais pobres recebiam caridades esporádicas (telhas, tijolos, dentaduras, pequenas quantias em dinheiro, cimento, remédios, empregos medíocres, passagens, etc. ); a classe média ( tão parasitária quanto a classe baixa ) recebia nomeações na educação, na saúde e na administração; já a elite ( nascida historicamente nas próprias entranhas do clientelismo nordestino ), formada por proprietários de terras, grandes comerciantes, médicos, advogados, membros das famílias “tradicionais”, era cooptada através das nomeações para as secretarias de finanças, de obras, da saúde, da educação e etc. Controlando nossas elites e a classe média, tradicionalmente parasitárias do Estado, cooptando os pobres e os remediados, controlando as rádios da cidade, aliciando a lealdade e o silêncio da câmara de vereadores, pôde o grupo exercer predominância política no Ipu pôr muitos anos.
Mas o esquema de ganhar eleições através da promoção de favores e assistência construído pelo empresário carregava em si um defeito estrutural que o levaria à falência e ao esgotamento: ao abarcar tanta gente, fornecendo recursos obscuros para “pagar” pela lealdade de seus “clientes”, o esquema cresceu tanto que se tornou insustentável; ficou muito caro, tanto política quanto financeiramente, manter este “monstro assistencialista” em funcionamento; tal qual uma matilha de lobos selvagens revoltados com seu líder após uma cassada frustrada, nossa população já não era leal ao grupo; a lealdade se transformou em aversão, e depois em rejeição, e até mesmo em ódio. Durante o “linchamento moral” do prefeito Simão Martins, o empresário e seu grupo prometeram mundos e fundos à sociedade, e esta embarcou nas promessas casuísticas. Nesta ocasião, por puro capricho pessoal, o empresário manteve uma “prefeitura paralela” cujo único propósito era sabotar a gestão de seu antigo pupilo. Subornando a câmara de vereadores (as meretrizes de sempre, em sua maioria), foi possível sufocar a administração prefeitural, de modo a inviabilizar a gestão de seu opositor de modo doentio e irresponsável. O trabalho diário das rádios, como transmissões ao vivo, promoções de greves, protestos, denúncias etc., aliada a CPI do Fundef se encarregaram de demolir as bases de qualquer governabilidade. Estava montado o esquema: enquanto distribuía bonequinhos e bolinhas vestidos de Papai Noel nas periferias miseráveis do Cafute e das Pedrinhas, e seus asseclas promoviam a Copa Zezé e patrocinavam a invasão da prefeitura por garis e funcionários públicos com salários atrasados, podia o empresário galgar o estrelato: era então o “Grande Pai”! O “Grande provedor”!Aquele que se podia recorrer para arrumar empregos, promover carnavais, fazer ligadura de trompas, conquistar o perdão do IPTU, parar a conta de luz, emprestar carro para a “torcida” dos times da cidade etc. “O Homem é endinheirado, negrada, deixem comigo que eu resolvo!”, dizia o vereador mais articulado nestes “comércios de compra e venda de lealdade e promoção de torneios de futebol (Palácio, que fez sua carreira apenas manipulando o voto desta relé imunda, indolente e irresponsável que leva vida entre uma partida de futebol e um trago de cachaça). A “grana corria fácil”, fazendo a festa dos vereadores corruptos, dos delegados inoperantes, dos promotores inertes, dos juízes corruptos, e dos eleitores estúpidos.
Mas o esquema da “prefeitura paralela” só pôde se manter graças a uma infinidade de professas e assistencialismo barato cuja essência era consistia em inventar um Zezé fictício, um “paizão” construído de mentiras, de esmolas e promessas mirabolantes para “quando a gente assumir o poder, depois da queda do Traidor!” O empresário aparecia como “um santo homem”, “desapegado de sua fortuna pessoal”, “disposto a “torra-la” para “ajudar os pobres ipuenses vítimas do Traidor”: “-Quando a gente derrotar o Traidor, meu cumpade, vai ser um mundo de fartura e bonança no Ipu; não vai faltar emprego, caixão, dentadura, cimento, telha, passagem, remédio e carnaval; ninguém vai mais precisar pagar o IPTU, nem conta de luz e água, nem aluguel nos pontos do mercado, nem passagens nos ônibus das empresas do homi!” Está na cara que este esquema, que fora super-eficiente para destruir a gestão de Simão Martins e garantiu uma imagem “sacro-santa” ao grupo do empresário não poderia se sustentar minimamente.
Quando, há dois dias da eleição, a justiça cassou a candidatura do empresário por “desvio de dinheiro público” o seu encanto se quebrou: ele, que “não precisava de dinheiro da prefeitura”, que “não ligava pra isso, não”, que “queria administrar o Ipu sem pensar em si mesmo, só para ajudar os ipuenses” estava agora desmoralizado. Sua máscara começava a cair. Mas o torpor acarretado por anos de alienação era tão grande que a cassação do registro da candidatura de Zezé só fez ampliar o furor de nossa população entorpecida: “ Traidor inescrupuloso”, “Judas Escariotes”, “serpente traiçoeira”, Simão ao invés de arrepender-se de seu “crime” aprofundou com tal gesto a intensidade de sua “traição”! “-Negrada, o Traidor, como Silvério dos Reis, tramou contra o nosso patrão! Fela-da-puta covarde! Canalha maldito! Desgraçado! Infeliz! Eu te detesto, canalha!”. No processo que decidia o destino da cidade (seria o traidor candidato único? Perguntavam os mais afoitos) o judiciário encontrou uma brecha, e o empresário pôde colocar o seu filho Marcelo Carlos, o “bebêzão”, para ocupar o seu lugar no pleito. Aquela foi uma eleição que fedia a pólvora e a violência. Havia um cheiro de agressão no ar! “-Negrada, o traidor vai hoje pro fórum, vamos jogar ovo e bosta de cavalo na cara dele!” Corria nas ruas uma multidão alvoroçada, instigada pela batuta de um líder comunitário popular e populista patrocinado pelo empresário corruptor. Nas avenidas, nas ruas, nas praças, as pessoas, tangidas pelo som estridente dos alto-falantes, partiam em desalinho ao fórum do Ipu, “o lugar onde o traidor se refugiava para levar seu plano sórdido à frente”!
A agitação se deu desenfreada, os ódios estavam aforados. E o abandono da cidade se configurava com mais uma das Traições do “vendilhão Simão Martins”: com a condenação das contas do ano anterior, o municipio deixou de receber as verbas necessárias para o pagamento do salário dos seus funcionários, os hospitais pararam de atender pacientas, o lixo deixou de ser recolhido nas ruas, os ônibus que levavam os estudantes – para Sobral ou para os distritos – pararam de funcionar etc.; era o caos total. E para a população isso tinha apenas um culpado – Simão Martins – e um redentor – José Carlos. Enquanto isso, as rádios promoviam o linchamento moral do prefeito, e o ônibus do Bloco da Mala percorria as ruas da cidade cantando o refrão:“Arruma tua mala e dá o fora Jacaré!”, e a câmara cortava qualquer possibilidade de verba pública para a cidade. Como foi possível que o Ipu, na gesta ode Martins, tenha construído o hospital regional e a rodoviária, só Deus sabe!
Ao cortar o ônibus dos universitários, eu, que tinha boas relações com a facção dos Cururus (que ainda não tinham este nome), ao lado de Raimundo Diogo (que embora não sendo eleito, pôde assumir a cadeira de vereador, pois Palácio, o vereador “tapioca”, foi subornado com a secretaria de esportes, e o empresário cumpria a sua promessa frente ao seu melhor e mais eficiente cabo eleitoral), fomos todos inicialmente ao promotor, para ouvir o que ele teria a nos dizer, como nos defender (pois todos estavam na iminência de perder o ano letivo na universidade). Ao ouvir do Doutor “que não tinha nada a ser feito, pois não era obrigação do prefeito pagar transporte pra universitários”, eu quis interpelar dizendo “mas doutor, nós vamos perder o ano letivo, não tem nada que a justiça possa fazer?”; o promotor ergueu-se furioso de sua cadeira, veio prepotente em minha direção, e botando o dedo na minha cara, disse gritando “-Não tem obrigação! Eu é que sei! E quem manda aqui sou eu!” (até hoje não entendi o porquê de tamanha prepotência). O mais curioso foi o restante da fala da mesma autoridade: “-Por que é que vocês não vão procurar o empresário José Carlos, ele é dono de frota de ônibus, vai ter prazer em custear as viagens de vocês até que ele e seu filho assumam a prefeitura?”. O empresário pagou metade das despesas (a outra metade ficou por canta de cada estudante), e a novidade foi que conseguimos que mesmo os “adversários” entrassem no “esquema”, e estava montada a estrutura de saída do “traidor” e de retomada do “redentor” do Ipu. Esta pôrra ia dar merda. Zezé não era santo, e estava a anos-luz de ser o “bem feitor bem intencionado” que as rádios e os seus cabos eleitorais pintaram. O feitiço virar-se-ia contra o feiticeiro. Era só uma questão de tempo.
A tara do empresário era tamanha que ele não permitiu que seu próprio filho administrasse a cidade. Como um rinoceronte, metendo os pés pelas mãos, passou por cima de Marcelo, que fora obrigado a renunciar (nunca as instituições da cidade foram tão ofendidas: a câmara prostituída, o cargo de prefeito aviltado, o judiciário amesquinhado etc. De um lado havia a pressão da sociedade parasitária, querendo mais verbas, mais favores e mais benefícios estatais, de outro lado havia a pressão dos órgãos de fiscalização do Estado, a cortar verbas e a exigir lisura nos gastos públicos. Esmagada pôr dois focos de pressão, “a máquina de ganhar eleições” entrou em colapso, e um outro grupo, capitaneado pelo carisma pessoal da velha “raposa de Pires Ferreira” pôde aproveitar-se do desmoronamento do monstro anterior. Zezé não foi derrotado por Torrim; como uma imensa jaca madura, caiu sozinho de seu galho, graças aos desgastes gerados por seus vícios, a impossibilidade de manter a sua “máquina de ganhar eleições”, e a pressão do TCM, da CGU e de outros órgãos de fiscalização dos novos tempos.
(este artigo foi re-elaborado a partir de um originalmente publicado no finado site do Outra História)
R. Arcanjo. Intimidações para Arcanjoberne@bol.com.br